Como as eleições dos Estados Unidos podem definir o futuro das políticas climáticas

Recursos disponíveis tanto para o Brasil quanto para países europeus estarão em jogo nas urnas

28/10/2024 às 09:15 | 8 min de leitura | Edição Impressa
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Agosto marcou o 15º mês consecutivo com temperaturas recordes nos 175 anos de registros climáticos da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica, a NOAA, dos Estados Unidos. O escaldante mês foi acompanhado por incêndios ao redor do mundo. 

O Brasil enfrentou —e ainda enfrenta— uma seca avassaladora na Amazônia, assim os vizinhos Bolívia, Peru, Argentina e Paraguai. 

Portugal enfrentou em setembro grandes incêndios, os maiores em anos. Espanha e os Estados Unidos não ficaram de fora. Enquanto o clima da Terra entra em convulsão, o tema da mudança climática raramente surgiu no centro do debate eleitoral dos Estados Unidos, o maior emissor histórico de gás carbônico. 

O ex-presidente Donald Trump nega que o aquecimento global tenha uma causa humana, promete intensificar a exploração de petróleo e declarou em agosto que a subida do nível dos oceanos “criará propriedades de frente para o mar”. 

A atual vice- presidente Kamala Harris, por sua vez, reconhece que o tema se trata de “uma ameaça existencial”, mas evita detalhar as propostas para o tema, receosa de que se o fizesse perderia votos. A ausência de debates públicos entre os candidatos sobre a mudança climática esconde diferenças profundas em seus projetos de governo. 

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A continuidade e o aprofundamento de programas bem-sucedidos da gestão de Joe Biden, uma série de regulações relativas a combustíveis fósseis e proteções ambientais, a permanência dos Estados Unidos no Acordo de Paris e até recursos disponíveis tanto para o Brasil quanto para países europeus estarão em jogo nas urnas quando os americanos forem votar no dia 5 de novembro. 

A continuidade em jogo

A principal legislação do governo Biden para conter a mudança climática foi a chamada Lei de Redução da Inflação, de 2022, conhecida pela sigla IRA. 

O pacote —aprovado no Senado com um voto de Minerva de Harris, presente na condição de vice-presidente— destinou quase 400 bilhões de dólares para conter a mudança do clima e é considerado a mais ambiciosa lei da história americana sobre o assunto. 

A IRA busca impulsionar a transição energética por meio da expansão da capacidade produtiva de setores específicos da economia, reunindo diversas formas de financiamento para empréstimos, subvenções e créditos fiscais. 

Um conjunto de nove equipes de pesquisa modelou o impacto da IRA nas emissões de carbono dos Estados Unidos. A pesquisa concluiu que a lei reduzirá drasticamente as emissões de carbono do país, com uma queda entre 43% e 48% até 2030 em comparação aos níveis de 2005. 

Antes da lei, os norte-americanos reduziam as suas emissões em cerca de 2% ao ano; com a lei, diz a pesquisa, o ritmo aumentará para cerca de 4% ao ano —em 2023, o índice foi de 2,7%. 

A lei cria incentivos para que estados e municípios tenham acesso a recursos para construir novas infraestruturas e tecnologias de energia limpa, como linhas de transmissão, painéis solares, turbinas eólicas e indústrias de veículos elétricos, além de diversas práticas de conservação. 

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Segundo o Partido Democrata, há em andamento 585 novos projetos de energia limpa espalhados em 47 dos cinquenta estados norte-americanos. A política, porém, depende de governos locais irem atrás dos benefícios, e nem todos sabem como fazê-lo —alguns alegam dificuldades em terem acesso aos recursos. 

No entanto, há vantagens na estratégia: políticos de diferentes partes do espectro ideológico abraçaram a iniciativa. Estados mais tradicionalmente republicanos, como a Geórgia e a Carolina do Sul, foram alguns que receberam os maiores investimentos até agora, algo significativo para as eleições: isso indica que, mesmo se Trump quiser reverter medidas, como afirmou que pretende fazer, não terá vida fácil para isso. 

“Uma das questões da genialidade de Biden é ter criado um incentivo tão poderoso que os estados que mais dinheiro estão recebendo são republicanos”, afirmou o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas Matias Spektor. 

“Mesmo se Trump voltar ao poder, ele estará limitado em sua intenção de dar passos atrás.”

Saída de Paris

Há, todavia, outras esferas em que Trump terá mais liberdade, caso vença as eleições. Uma delas é o Acordo de Paris. Na Casa Branca, Trump anunciou em junho de 2017 que os Estados Unidos deixariam o acordo, e concretizou a promessa três anos depois, após passar por um longo processo burocrático. 

Em seu primeiro dia na presidência, Biden assinou a volta ao pacto. Se Trump for reeleito, o prazo para desligamento desta vez será de um ano. O republicano tem evitado falar diretamente sobre o tema, mas sua secretária de imprensa Karoline Leavitt e outros assistentes disseram que a saída deve se repetir. 

As consequências de uma nova saída do país podem ser graves. “Primeiramente, e de modo óbvio, a soma das metas nacionais é reduzida se alguns países abandonarem suas metas”, afirmaram em uma análise Mario Larch, da Universidade de Bayreuth, e Joschka Wanner, do Instituto Kiel para a Economia Mundial, na Alemanha. 

Em segundo lugar, afirmam, a saída pode levar ao aumento de emissões em outros lugares, devido a deslocamentos da produção de bens intensivos para países não regulamentados e da queda nos preços dos combustíveis fósseis no mercado mundial. 

Para tomar a decisão sobre sair ou não, Trump deve esperar para ver como estará a opinião pública doméstica sobre o tema, afirmou Matias Spektor. 

“Ele fará esse cálculo sempre em função da política doméstica. O momento crítico será em 2025, quando o Acordo de Paris publicará o resultado da performance dos países-membros pela primeira vez, indicando quem cumpriu e quem faltou com seus compromissos. É impossível saber o que fará”, disse Spektor. 

Outra consequência ainda mais grave: há especulações de que um governo Trump pode deixar a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 1992, de sigla impronunciável: UNFCCC. 

Políticos conservadores de peso defendem a saída. Uma delas é Mandy Gunasekara, ex-chefe de gabinete da Agência de Proteção Ambiental durante a gestão Trump. Ela disse ao site Politico no início deste ano que isso proporcionará uma "resposta mais permanente" a acordos "que pouco fazem para realmente melhorar o meio ambiente". Assim como o Acordo de Paris, a UNFCCC não é de cumprimento obrigatório. 

Deixar a convenção, todavia, deixaria os Estados Unidos livres de qualquer obrigação sob a convenção, incluindo a comunicação regular de suas emissões. É incerto o caminho para sair da convenção, mas se entende que basta uma maioria simples no Senado —e os republicanos são favoritos para ganhar a Casa. Um retorno ao tratado, no entanto, exigiria uma maioria de dois terços no Senado, o que pode ser algo inviável ao longo de décadas. 

Em termos de política externa, outra medida de Trump pode afetar a Europa: caso retire recursos militares da Otan, isso significará que os países europeus precisarão investir mais na própria segurança, ficando com menos recursos para investir em seus próprios planos contra a crise climática. 

Em fevereiro, ele afirmou que países que não cumprem suas obrigações financeiras com a aliança “são delinquentes” e que ele “encorajaria” o Kremlin “a fazer o que bem entendesse” com eles.

Aposta no petróleo

Domesticamente, a medida mais drástica de Trump em relação ao clima envolve a rápida expansão da produção de combustíveis fósseis —petróleo e gás—, o que, segundo ele, pode reduzir a inflação. Como diz seu site, Trump quer que os Estados Unidos sejam “o produtor dominante de energia no mundo, de longe!” (nota: desde 2018 o país já o é, tendo produzido mais petróleo em 2023 do que em qualquer outro ano). 

Quando presidente, Trump tomou medidas para remover restrições à exploração de petróleo e gás. Desta vez, o America First Policy Institute, um centro de estudos que emprega vários ex-funcionários da primeira gestão Trump, diz que as restrições sob o presidente Biden representam uma "guerra contra a energia americana". 

Tal como na primeira vez, o republicano também pode pressionar pela construção de novos oleodutos, usando ordens executivas para agilizar o seu licenciamento. Espera-se também o uso de ações executivas para reduzir as regulações sobre empresas de petróleo e gás. 

Em 2023, por exemplo, a Agência de Proteção Ambiental norte-americana impôs novas regras para reduzir as emissões das operações de derivados do petróleo. “Espera-se que um governo de Trump revogue todas essas disposições”, afirmou Ed Crooks, vice-presidente da consultoria Wood Mackenzie. 

No caso dos veículos elétricos, a postura de Trump passou por uma recente mudança após o apoio formal de Elon Musk, dono da Tesla. Em março, a EPA anunciou uma regra definindo rígidos padrões de emissões que poderiam, segundo a agência, fazer com que 68% dos novos carros ou camionetes leves vendidos em 2032 fossem elétricos. 

Após reiteradamente taxar as políticas de Biden de subsídios aos veículos como "loucura" e escrever que os apoiadores dos carros deveriam "APODRECER NO INFERNO" (em caixa alta), Trump disse em um comício em Atlanta em agosto que defende "uma pequena parcela" dos carros serem elétricos. 

"Eu tenho que ser assim, sabe, porque Elon me apoiou muito fortemente", disse Trump.

Limites de Harris 

Não se sabe até onde Trump poderá ir, porque há limites ao que podem fazer os presidentes. Espera-se, por exemplo, que o Congresso fique dividido, com os democratas ficando com a Câmara. 

Isso também é válido para Kamala Harris: quando era senadora pela Califórnia, ela se opôs ao fracking, uma técnica utilizada para extrair petróleo e gás natural de formações rochosas subterrâneas, especialmente em camadas de xisto, mas agora ela afirma que não proibirá a prática em terras federais se for eleita. 

No debate de 10 de setembro, afirmou: "Eu fui o voto de desempate na Lei de Redução da Inflação, que abriu novas concessões para o fracking. Minha posição é que precisamos investir em fontes diversificadas de energia para reduzir nossa dependência do petróleo estrangeiro". 

Uma restrição à exploração poderia elevar o preço do petróleo, o que teria impactos sobre a inflação. Se há ações favoráveis ao meio ambiente que Harris não tomará, outras, no entanto, ela deve seguir. 

Embora ela tenha sido propositalmente vaga sobre o tema, a percepção geral de especialistas em política climática é de que sua presidência deverá aprofundar e consolidar avanços do governo de gestão Biden, continuando a usar a IRA e fortalecendo a EPA em termos de regulações. 

A continuação das políticas por mais um mandato pode vir a torná-las definitivas no longo prazo, “porque em 2029 a transição energética talvez já tenha se tornado grande demais para ser reversível”, escreveu Tim Benton, pesquisador de energia da Chatham House, de Londres. 

O maior indicativo de quais devem ser os planos ambientais de Harris até agora são as sete páginas, entre noventa ao todo, dedicadas ao assunto no programa de governo do Partido Democrata, publicado no fim de agosto. 

Mesmo lá, todavia, a ênfase é nas conquistas de Biden e no histórico de Trump, com pouca clareza sobre quais serão as inovações. 

Nas páginas com promessas, há uma reiteração do verbo “continuaremos”: “continuaremos pressionando para reduzir as emissões dos edifícios e da indústria pesada dos Estados Unidos”; “continuaremos intensificando as ações para combater outras formas de poluição do ar e da água”; “continuaremos enfrentando a grande indústria petrolífera, enquanto nosso boom de energia limpa quebra o monopólio da indústria sobre os mercados de energia”, entre outros. 

Numa rara medida concreta sobre o tema, o plano afirma que o governo eliminará “dezenas de bilhões de dólares em outros subsídios injustos para o petróleo e gás”. 

Harris, Trump e o mundo

A parte dedicada ao clima do programa de Harris termina abordando qual deve ser o papel dos Estados Unidos para ajudar outros países a enfrentar a crise climática. 

O programa cita o compromisso feito por Biden em 2021 de alocar 11 bilhões de dólares em financiamento climático por ano para ajudar a desenvolver o mercado internacional de energia limpa, uma promessa ainda não cumprida devido à ausência de maioria no Congresso. 

Outra promessa que aparece é o compromisso de os países ricos destinarem 100 bilhões de dólares para os países em desenvolvimento, uma parte importante do Acordo de Paris que jamais foi cumprida. 

Outro compromisso que aparece é usar a liderança norte-americana “para impulsionar a inovação global e expandir as cadeias de fornecimento de energia limpa”. Este assunto é mais bem desenvolvido na Estratégia Americana de Desenvolvimento Global, lançada no dia 18 de setembro. 

No documento, o governo Biden promete investir para ajudar o desenvolvimento sustentável de países de renda baixa ou média. A esperança é de que haja investimentos em países como o Brasil, portanto, está indiretamente incluída no programa de governo de Harris. 

Em julho, houve um bom indicativo neste sentido: os Estados Unidos anunciaram o repasse de 47 milhões de dólares ao Fundo Amazônia, entregando a primeira parcela de uma promessa de 500 milhões, assumida por Biden, em abril de 2023. 

Na ocasião, a embaixada norte-americana disse em nota: "A Administração Biden continuará a trabalhar com o Congresso para solicitar e garantir o financiamento remanescente para o Fundo e atividades relacionadas até 2028". Sob Trump, é certo, esse dinheiro não vai aparecer.

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