Reunir três profissionais do setor de bares e restaurantes numa manhã de sexta é um feito quase poético, dado o ritmo frenético e as idiossincrasias do universo gastronômico.
A tarefa ganha contornos audaciosos quando se trata de três chefs das mais renomadas brasileiras em Portugal —figuras cuja trajetória desafia convenções em um setor em que, segundo dados do Office for National Statistics do Reino Unido, apenas 20% das posições de chef em restaurantes são ocupadas por mulheres, algo que não difere muito do resto do mundo.
Michele Marques, por exemplo, tinha, naquele 21 de fevereiro —data do nosso encontro— a responsabilidade de abrir o Food Love Fest, um festival que celebra a riqueza da gastronomia do Alentejo e do Ribatejo.
Assim que encerrasse a entrevista e a sessão de fotos para a BRASIL JÁ, ela precisaria acelerar rumo a Estremoz, a duas horas de Lisboa, para comandar o jantar de abertura do evento, ao lado do marido, na Casa do Gadanha.
Enquanto isso, Juliana Penteado, igualmente atarefada, preparava-se para estrear como entrevistadora no tapete vermelho da cerimônia do Guia Michelin em Portugal, que ocorreria poucos dias depois no Porto.
Já Flavi Andrade, bar manager do Rossio Gastrobar, corria contra o tempo num dos dias de maior movimento no rooftop do hotel Altis Rossio, onde a demanda por seus drinques autorais –desde que foi agraciada com o prêmio Mesa Marcada de 2024– só aumentava.
"É necessário respeitar a cultura e o espaço do outro, entender como podemos somar", iniciou Flavi Andrade, refletindo sobre sua experiência como imigrante na cena gastronômica portuguesa.
Para Juliana, que atua na confeitaria –um campo tradicionalmente feminino–, o toque delicado e a sensibilidade inerentes ao olhar da mulher adicionam "delicadeza, essência e perfume" à cozinha.
"Trouxe a técnica dos óleos essenciais e encontrei meu lugar num momento em que as pessoas ansiavam por novas experiências", disse.
Na coquetelaria, onde a presença feminina ainda precisa conquistar seu espaço, Flavi minimizou o impacto do gênero ao afirmar:
"Destacar-me nessa área sendo mulher foi uma consequência, pois sempre coloco a pessoa, a profissional, à frente do gênero. Mas não se pode negar que a garra e o espírito de luta das mulheres fazem toda a diferença no trabalho".
Veterana entre as três, Michele Marques –que já vive em Portugal há quase duas décadas– relembrou com certa ironia a ousadia de inaugurar seu restaurante em Estremoz.
"Foi muito trabalho e um pouco de sorte. Há 15 anos, uma mulher brasileira abrindo um restaurante, assumindo a cozinha e o negócio? Devem ter pensado que eu era maluca", recordou, enfatizando que sua estratégia sempre foi agregar à cultura local, em vez de impor algo de fora.
"O que existe aqui? O que posso trazer de bom para esta terra? Como fazer a diferença?", questionou-se na época, após ter se aprofundado em estudos sobre a culinária e a cultura alentejanas.
Este texto não é apenas um relato das agendas agitadas de três profissionais; é um retrato da luta constante de mulheres que, mesmo em um ambiente marcado pela sub-representação e pelos desafios de um setor historicamente masculino, demonstram criatividade, resiliência e paixão pela arte de cozinhar.
Seus doces de influência francesa, realçados pelo toque singular dos óleos essenciais, não apenas a projetaram para a televisão – eles a tornaram referência entre seus pares na cena gastronômica.
O brilho das câmeras também a levou a ser uma das apresentadoras da cerimônia de premiação do Guia Michelin em Portugal, no final de fevereiro.
“Foi uma grande responsabilidade. Senti um friozinho na barriga, mas, após as primeiras entrevistas, fiquei mais à vontade e o trabalho fluiu”, declarou a confeiteira, pouco depois da festa, trajando um deslumbrante vestido amarelo que acentuava seu largo sorriso.
A alegria que sempre se reflete no rosto de Juliana transparece em seus doces – especialmente os choux e entremets – que, além de belíssimos, apresentam combinações de sabores inusitadas, como toranja e manjericão, surpreendendo os clientes a cada mordida.
Essa alquimia sensorial deve muito aos óleos essenciais, os quais, segundo a chef, “trazem aos doces uma magia que vai além do paladar. É uma experiência sensorial completa, capaz de despertar memórias, provocar emoções e envolver os sentidos de forma sutil e profunda. O perfume se funde ao sabor, criando camadas de sensações que nos transportam para momentos, lugares e histórias.”
A inspiração para incorporar os óleos essenciais remonta às memórias de infância, quando sua mãe os usava para fins terapêuticos com ela e suas irmãs. Anos depois, durante um curso de cozinha em Paris, Juliana teve seu primeiro contato com a versão comestível dos óleos.
“Fiz formação na área, primeiramente para compreender melhor a aromaterapia. Depois, mergulhei na pesquisa para estudar aspectos químicos, como a volatilidade e o comportamento do ingrediente nas receitas”, contou.
O conceito inovador catapultou a fama dos produtos da chef, tornando-os dos mais cobiçados em Portugal. Comer, por natureza, é uma experiência sensorial, mas a chef consegue intensificá-la ao afirmar que “é uma fusão entre técnica e alma, entre ingredientes e intenção. Sempre acreditei que o mais importante na cozinha não é apenas o que se coloca na receita, mas a energia e o significado que ela carrega.”
Apesar da tradição francesa, Juliana demonstra profundo conhecimento dos doces portugueses. Antes de inaugurar seu empreendimento, ela percorreu o país, batizando essa jornada de “Rota Amarela”, com o objetivo de conhecer de perto os famosos doces portugueses, feitos basicamente de ovos e açúcar.
“A viagem foi essencial para criar raízes em Portugal, o país que escolhi para viver. Foi através da doçaria que pude entender o país de forma mais profunda”, afirmou.
Entre doçuras e desafios, Juliana Penteado segue revolucionando a cena gastronômica, transformando cada receita em um manifesto de técnica, alma e resistência.
A chegada de Flavi Andrade a Portugal foi quase um acaso – consequência de um dos inúmeros convites que recebe graças ao seu talento na coquetelaria. Enquanto vivia em Sevilha, onde cursava doutorado, começou a se interessar pelo universo das bebidas. Um dia, preparou drinques como convidada em um bar na fronteira entre Portugal e Espanha, na região do Algarve.
“Ali, recebi um convite para mudar de país e aceitei o desafio. Fiquei por quatro anos, até surgir a oportunidade de assumir o Rossio Gastrobar como bar manager”, relembrou.
Foi nesse badalado endereço, no topo do Hotel Altis Avenida, que a brasileira consolidou seu nome na mixologia portuguesa, impulsionada por uma afinidade especial com os ingredientes locais, pelo interesse nas histórias que eles carregam e por sua criatividade.
“Nosso menu é um passeio pelos sabores de Portugal. Cuidamos para deixar um gostinho especial em cada copo”, afirma.
O coquetel Cacilheiro, escolhido para a sessão de fotos, é um exemplo desse conceito: leva ginja – uma prima da cereja – e o tradicional vinho fortificado de Carcavelos, produzido na região de Lisboa.
“O cuidado e a pesquisa em torno dos ingredientes portugueses fazem toda a diferença no meu trabalho. É uma soma de respeito e gratidão pelo acolhimento que tive no país”, disse. Entre outros coquetéis criados a partir de suas andanças por Portugal, destaca-se o Maxim’s, feito com castanha, vinho do Porto e bolota – fruto da família dos carvalhos.
“Trabalhar com gastronomia é um processo constante de descobertas. A bolota surgiu de coisas que provei, até que encontrei um fornecedor no Freixo do Meio. Quis reinventar o Expresso Martini – que muitos evitam por causa da cafeína – e criei um coquetel que tem boa aceitação”, explica.
Seu trabalho, em um setor ainda predominantemente masculino, tem sido amplamente reconhecido. No ano passado, Flavi recebeu pela segunda vez o título de melhor barmaid de Portugal, concedido pelo Lisbon Bar Show. O Rossio Gastrobar, sob seu comando, foi eleito o melhor bar em restaurante pelo prêmio Mesa Marcada, um dos mais prestigiados do país. Na Espanha, também foi premiada com o Top Cocktail Bar.
No dia a dia, ela trabalha lado a lado com o marido, o sous chef de bar Guilherme Lacerda, e o chef João Correia. Juntos, desenvolveram um projeto inovador de harmonização de coquetéis – com ou sem álcool – com os pratos servidos no restaurante.
A chef Michele Marques é daquelas mulheres que se multiplicam para dar conta da carreira e dos filhos. À frente da Gadanha Mercearia e Restaurante, em Estremoz, no Alentejo, levou a casa à lista de recomendados do Guia Michelin e tornou-se referência gastronômica no país, especialmente após ter o título de Cozinha Tradicional Portuguesa Maria de Lurdes Modesto.
Também ganhou reconhecimento nos ares. Em 2017, durante a viagem de mudança do Brasil para Portugal, sua mãe folheava a revista de bordo da TAP quando, de repente, encontrou a filha nas páginas dedicadas à gastronomia portuguesa e se emocionou.
“Ali, ela teve a certeza de que as coisas realmente tinham dado certo”, lembrou Michele.
O restaurante, que ainda mantém a mercearia que deu início a tudo há 15 anos, respira a tradição alentejana, mas com um olhar moderno. “Defino como uma cozinha de mãe, que abraça quem prova”, disse a chef.
A carta de vinhos, parte essencial da casa, nasceu do projeto original da mercearia – uma ideia que surgiu quando Michele ainda trabalhava em feiras, apresentando produtos regionais pelo país.
“Muita gente perguntava onde comprar aqueles produtos, e percebi que faltava um lugar central em Estremoz para isso. Abrimos com itens tradicionais e uma garrafeira. Deu super certo.”
Com o tempo, os clientes começaram a pedir um naco de chouriço aqui, um pedaço de queijo ali, sempre acompanhados de uma taça de vinho. Foi quando veio o passo seguinte: transformar o espaço em restaurante.
“Já tinha formação em gastronomia e senti que era hora de colocar o aprendizado em prática.” A aposta funcionou. Naquele momento, Estremoz ainda não tinha um restaurante que reinterpretasse os pratos tradicionais alentejanos – como o porco preto, o borrego e, claro, o pão, sempre presente à mesa. O coentro, ingrediente essencial na região, também não podia faltar.
Quando fala do restaurante, seu sotaque mistura traços do português do Brasil e de Portugal. São quase 20 anos no Alentejo, dois filhos com o também chef Ruben Trindade e um forte sentimento de pertencimento à cidade que a acolheu. “É uma alegria ser uma disseminadora da boa comida alentejana”, falou enquanto seus olhos brilhavam.
Integrada ao ritmo da região, Michele se equilibra entre a rotina intensa da Gadanha Mercearia, a administração da Casa do Gadanha – hospedaria que recebe visitantes de Estremoz – e a criação dos filhos.
O restaurante do estabelecimento tem como chef seu marido. “Não é fácil, ainda mais quando um filho pede para a gente ficar em casa. Mas vamos ajustando tudo com uma boa rede de apoio, que inclui minha mãe e uma equipe de confiança nos restaurantes”, contou.
Para quem domina a alquimia dos ingredientes certos e dose exata, a receita para a vida segue o mesmo princípio. “É preciso ter equilíbrio.”
*Os dólmãs usados no ensaio são da Prochef (brancas) e da Martiform (verde-oliva).
ASSISTA À ENTREVISTA:
Serviço
Juliana Penteado Pastry Onde: Calçada da Estrela, 5 – São Bento – Lisboa e Avenida António Augusto Aguiar, 66ª – Lisboa Mais informações: @juliana__penteado (Instagram)
Rossio Gastrobar (Hotel Altis Avenida) Onde: Rua 1º de dezembro, 118 – Lisboa Mais informações: @rossiogastrobar (Instagram)
Gadanha Mercearia Onde: Largo Dragões de Olivença, 84ª – Estremoz Mais informações: @gadanhamercearia (Instagram)
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