Neguinho da Beija-Flor após palestra na Universidade de Coimbra. Crédito: Fernando Thompson, BRASIL JÁ

Neguinho da Beija-Flor após palestra na Universidade de Coimbra. Crédito: Fernando Thompson, BRASIL JÁ

E teve samba — e resistência — na Universidade de Coimbra

Neguinho da Beija-Flor foi o primeiro sambista a palestrar na Universidade de Coimbra

04/04/2025 às 07:24 | 5 min de leitura | Cultura, Diversão e Arte
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Coimbra viveu momentos que entraram para a história da mais antiga universidade de Portugal, símbolo acadêmico europeu com sete séculos de existência. 

No último dia 26, ecoou pela primeira vez entre os muros da instituição e em posição de poder a voz de um sambista brasileiro, nascido na periferia, negro, forjado na cultura popular e lenda do carnaval carioca: Neguinho da Beija-Flor. 

Num espaço historicamente reservado à intelectualidade europeia, uma plateia formada por estudantes, professores, artistas, pesquisadores e brasileiros imigrantes viu a quebra de uma barreira cultural, com Neguinho sendo reconhecido como uma voz legítima de produção do saber. 

MAIS: O pioneirismo de Neguinho da Beija-Flor

O auditório estava cheio. No centro da mesa de debate, ao lado de acadêmicos e representantes da universidade, Neguinho se acomodou e seus olhos brilhavam. Então, o artista segurou o microfone e respirou fundo antes de dar início à palestra. 

A apresentação não era musical, mas envolvia o carnaval que Neguinho personifica. O tema foi Samba e suas raízes: uma viagem pela cultura brasileira, africana e portuguesa.

"A ficha ainda não caiu", afirmou o artista à BRASIL JÁ. Visivelmente emocionado, acrescentou: "Nunca imaginei, nem nos meus maiores sonhos, que um dia estaria dando uma palestra numa universidade como Coimbra. Isso é muito maior do que eu." 

A trajetória de Neguinho 

Ao público atento, Neguinho escancarou a própria história de vida. "Eu fui ter luz elétrica em casa com 19 anos", relembrou. 

"Vim de uma família muito humilde. Nunca tive a oportunidade de fazer faculdade. Só não tenho curso superior por falta de oportunidade mesmo", completou o artista. 

Neguinho da Beija-Flor em Coimbra.

De Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Neguinho ganhou o mundo por meio da arte, que o afastou temporariamente da sala de aula. 

"A música me proporcionou uma situação financeira estável, mas também me tirou o tempo para estudar. Deus escreve certo por linhas tortas."  

A plateia ouviu o relato com atenção. A cada fala, aplausos, olhares marejados e celulares gravando um momento ímpar.

O saber não que não está nos livros 

Na sequência da fala de Neguinho, a professora Louise Amorim Beja, doutora em Direito e docente da Faculdade de Direito de Coimbra, disse, emocionada: 

"Sou do sertão da Paraíba. Cresci assistindo ao Neguinho da Beija-Flor pela televisão, nos desfiles. Hoje, ao lado dele, aqui nesta mesa, eu percebo o quanto demoramos, enquanto universidade, enquanto Europa, a entender que o saber não está apenas nos livros. O samba é filosofia. O samba é direito. É história oral. E é resistência".

Ela lembrou que a Universidade de Coimbra foi, durante séculos, uma instituição inacessível à cultura negra, algo que, diz a professora, tem mudado nos últimos tempos.

"Estamos falando de uma universidade que produziu conhecimento durante o tempo da escravidão e quase nunca reconheceu a cultura negra como fonte de saber", afirmou. "Ter Neguinho aqui hoje é como abrir uma janela num prédio trancado há séculos." 

Perguntas que nascem da vivência 

Como é de praxe, houve o momento de perguntas dos estudantes. Muitos foram além das indagações e narraram vivências, compartilharam dores e se conectavam com Neguinho como quem reencontra um ancestral. 

A estudante Jéssica (que não disse o sobrenome) levantou da cadeira para falar do conservadorismo crescente no Brasil e das críticas às escolas de samba que exaltam religiões de matriz africana:

— Neguinho, eu estava no Brasil neste último carnaval e vi nas redes sociais comentários agressivos contra sambas que falavam de orixás, de candomblé. Como explicar para essas pessoas que o carnaval é a alma de uma comunidade, que é feito por gente que trabalha o ano inteiro e carrega uma herança viva? — perguntou a universitária.

—  O samba nasceu nas casas de mães de santo, nos terreiros, nos morros. Tem sangue africano e espírito brasileiro. Quem nega isso, nega nossa origem. E as redes sociais, infelizmente, estão sendo usadas para espalhar ignorância. Mas a nossa resistência é mais antiga que a internet. A gente continua — respondeu o artista.

A consagração no samba 

Outra aluna perguntou sobre o icônico samba “Domingo eu vou ao Maracanã”, composto por Neguinho nos anos 1970 e que, em 2021, virou o hino oficial do maior estádio do mundo. “Você sabia, quando compôs, que seria tão marcante?”, perguntou. 

"Não. Fiz esse samba em 35 minutos. Era só mais uma música, uma homenagem ao Flamengo. Nunca imaginei que ia virar hino. Mas o povo abraçou. O povo sempre sabe o que é verdadeiro", detalhou o sambista. 

Outro estudante, de Jornalismo, perguntou a Neguinho como ele se sentia ao supostamente ter um DNA mais europeu do que africano em sua genética. "Isso muda a forma como você vê sua missão no samba e no mundo?", questionou o aluno.  

Neguinho sorriu, pensou um pouco e respondeu: "Olha, esse exame foi feito pelo programa Fantástico [da TV Globo] com vários artistas negros. Todos tinham maior porcentagem africana. Eu fui o único com mais de 60% europeu. Não sei explicar. Mas acho que Deus quis assim. Eu carrego África, Europa e Brasil no sangue. Sou a ponte. E o samba é essa ponte." 

Uma nova fase

Aposentado da Sapucaí com saída vitoriosa em 2025, Neguinho comentou o projeto de trazer o carnaval para a Europa. "Vamos fazer muito sucesso aqui. Não tenho dúvidas. Quando o carnaval do Neguinho chegar em Portugal, todo mundo vai cantar samba." 

Para ele, é uma etapa que faz parte de uma transformação mais ampla, que o artista interpreta como social e cultural. 

A "questão de brancos contra negros já foi muito pior". Quando eu era garoto, era muito mais difícil. Mas hoje está melhor", afirmou, acrescentando: "E eu acredito que daqui a duzentos ou trezentos anos, essa desigualdade vai deixar de existir".

De saída do Carnaval do Rio, Neguinho da Beija-Flor vai seguir no samba em Portugal

Ao abordar diretamente temas como discriminação e racismo, Neguinho disse não ser uma pessoa raivosa e acreditar no caminho "da persistência, da valorização da cultura afro-brasileira sem briga". "O samba é a minha arma", acrescentou.  

O sambista avalia que o gênero musical tem poder para seguir promovendo o intercâmbio entre continentes, histórias e identidades. 

"O samba é a igualdade. É uma arte que nasceu do sofrimento e virou símbolo de alegria. É uma linguagem que todos podem entender. E eu estou aqui, em Coimbra, para provar isso." 

Documentação histórica

A estudante Mariana Xavier, criada na quadra da Beija-Flor, lembrou momentos marcantes de sua infância e perguntou como Neguinho via a transformação do samba na Europa —de reduto de brasileiros a espaço multicultural:

— Você acha que o samba pode unir culturas diferentes aqui em Portugal? — perguntou. 

— É pra isso que estou aqui. Esses próximos anos da minha vida quero dedicar à integração do samba com o mundo. Já temos carnaval em Lisboa, em Coimbra. E eu vou estar lá, com agasalho, enfrentando o frio, porque o samba aquece — respondeu.

Outro estudante, João, jornalista e doutorando, perguntou sobre o papel do samba-enredo na formação de identidade nacional. Neguinho explicou que o samba-enredo é construído a partir de pesquisa, narrativa, história e poesia. "Quando a escola de samba fala de Pedro Álvares Cabral, ela está ensinando história. Quando fala de Joãozinho Trinta ou de Zumbi dos Palmares, também. É um livro que canta."

O samba agoniza, mas não morre 

Um dos pioneiros do samba em Portugal, o sambista moçambicano Xando Lopes, também emocionou a plateia. Ele lembrou que conheceu Neguinho numa roda de samba no Brasil, há 32 anos, e que desde então eles nunca mais se viram. 

Xando fundou o Grupo Samba Lelê, criado em Coimbra, nos anos 1970 por africanos e brasileiros. O reencontro foi uma alegria para Neguinho, e os dois deram um demorado abraço. Xando retribuiu sacando o cavaquinho e ambos sambistas transformaram o auditório num baile de carnaval. 

Ao se despedir, Neguinho foi questionado sobre seus carnavais preferidos. Escolheu o primeiro título da Beija-Flor, em 1976; "Ratos e Urubus, larguem minha fantasia", de 1989; e o casamento na Avenida, em 2009, durante um tratamento contra o câncer. 

"São momentos que marcaram minha vida para sempre", resumiu. E quando perguntado se aceitaria ser tema de enredo da Beija-Flor, sorriu: "Depende dos anjos da escola. Mas eu ficaria muito feliz." 

A professora Louise se despediu de Neguinho e do público dizendo que aquele momento marcava a ocupação do samba em Coimbra. "E [ocupação] não como visita, mas como dono da casa. A cultura negra chegou aqui, sim, Neguinho, e pela porta da frente."  

No encerramento, claro, mais música, ao som de "Bumbum Paticumbum Prugurudum". O evento foi promovido pela Casa do Brasil de Coimbra em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Editor de texto e de página: Nicolás Satriano

Imagens: Fernando Thompson, BRASIL JÁ

Editor de conteúdo: Nicolás Satriano

Editor-chefe: Nonato Viegas

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