Duas décadas de estudos sobre migrações fazem com que a professora e pesquisadora da Universidade de Lisboa, Catarina Reis Oliveira, seja uma das profissionais mais gabaritadas no assunto —e não só em Portugal.
Nesta entrevista à BRASIL JÁ, a até então coordenadora do principal relatório do país sobre o tema descreve o desmonte do Observatório das Migrações depois que o Alto Comissariado para as Migrações foi absorvido pela Aima.
No relato, Reis Oliveira detalha que o observatório foi esvaziado e, desde janeiro, não tem dinheiro para a produzir novos documentos e reunir dados. Sem as informações, formular políticas públicas para imigrantes em Portugal é uma tarefa impossível.
O Observatório das Migrações antes dirigido pela professora tem (ou tinha) como missão o estudo e acompanhamento científico das migrações. Além disso, produz, recolhe, analisa e difunde informação estatística sobre o assunto. O problema é que, agora, está sucateado.
É nesse contexto que a professora lembra que os dados são essenciais para embasar os projetos do governo. A narrativa em primeira pessoa sobre a saída dela da Direção Científica do observatório revela outra face do discurso que o governo português tem ecoado sobre o tema.
É, principalmente, contraditório. Por um lado, o Executivo anuncia medidas e faz mudanças profundas na legislação, afirmando querer melhorar a vida de estrangeiros em Portugal. Entretanto, o mesmo governo estrangula a produção de dados que o ajudaria a tomar decisões.
Também segundo a socióloga, as mudanças no observatório foram açodadas. Por exemplo, foi por meio da imprensa que ela soube que já não estava mais na direção do órgão. Mas antes a sua demissão repetina fosse o mais grave em todo esse contexto.
Reis Oliveira também lamentou que a falta de diálogo com o governo tenha deixado em standby a divulgação do relatório estatístico sobre asilos, que segundo ela tinha que ter sido publicado em 20 de junho. Sem ele, a administração pública fica às cegas, sem números comprovados sobre refugiados em Portugal.
Sobre um tema mais espinhoso e em evidência no país, a docente não se esquiva e afirma defender a regularização de estrangeiros: “Continua a ser uma contradição as pessoas estarem a pagar à Segurança Social, a trabalhar e não terem título de residência”.
Confira a entrevista com a professora Catarina Reis Oliveira
Qual o maior mito sobre os imigrantes em Portugal?
Há um mito antigo de que os imigrantes desgastam as contas públicas, mas eu acho que esse tem sido desconstruído. Mais recentemente reapareceram discursos associando imigração à criminalidade. Os dados não demonstram isso, mas é talvez um dos mitos mais enraizados e que volta e meia pessoas das mais variadas arenas misturam aquilo que não se consegue misturar.
Tem sido também uma aposta na análise de dados [da nossa parte] procurar desconstruir essa percepção.
Por isso é tão importante ter acesso a dados sobre a população estrangeira, certo?
Certo. De alguma forma, eu acho que nós melhoramos muito e tem sido também daquelas lutas dos últimos vinte anos: ter cada vez mais acesso, não apenas a inquéritos [pesquisas], em termos de dados estatísticos que o Instituto Nacional de Estatística vai produzindo, mas também ter dados administrativos do Estado português.
A informação que é recolhida tem bastante utilidade, não apenas para desconstruir falsas percepções ou falsas ideias sobre imigração, mas para orientar a política pública. As políticas públicas ficam mais informadas, não são tiros no escuro. Portugal não está isolado, e eu acho que é importante perceber que isto é um movimento insistido pela própria Comissão Europeia.
Desde 2010, há esta insistência, quando foi publicada a Declaração de Zaragoza, [definindo] que todos os países devem ter indicadores de integração de imigrantes. Portanto, não é algo que Portugal se tenha lembrado, é um movimento que, ao nível da União Europeia, há cada vez mais insistência sobre os países monitorarem a realidade da integração dos imigrantes para definir políticas públicas informadas.
O Mipex [Índice de Política de Integração de Migrantes] 2020 mostra Portugal entre os dez países com melhores políticas de integração de migrantes. Acha que em quatro anos pode ter mudado?
O índice de políticas [para integração] analisa a legislação, ou seja, o enquadramento legal, não a prática da lei. É importante entender isso. O último Mipex é de 2020, e nós sabemos que desde 2020 algumas coisas mudaram, incluindo as instituições públicas que gerem as migrações. Isso muda naturalmente em termos daquilo que são algumas das dimensões de integração que eles avaliam nas políticas.
Há cerca de dois anos que não se encontra disponível atendimento para reagrupamento familiar para cônjuge, por exemplo.
As pessoas que chegaram há menos tempo estão a ter mais dificuldade nos direitos plenos. Há uma grande dificuldade na área de integração, inclusive o reagrupamento familiar. Tem tudo muito mudado. Não apenas a pressão migratória tem aumentado, não ia dizer nos últimos meses, mas pós-pandemia, que foi um bocadinho a sala de espera que se gerou durante o período da pandemia e que foi as dificuldades que se geraram à circulação.
A manifestação de interesse também fez acumular muita gente sem residência?
Acumulou, de alguma forma, um aumento da pressão, tal como acumulou associado à mudança de instituição [transição de SEF para Aima]. Eu acho que há muitas causas que induzem, de alguma forma, a paralisação de alguns direitos que supostamente estão na lei e que não foram postos em prática.
Continua a ser uma contradição as pessoas estarem a pagar à Segurança Social [em 2023, estrangeiros deram 2,6 bilhões de euros de sobra, como mostrou a BRASIL JÁ], estarem a trabalhar e não terem um título de residência, o que lhes confere uma série de outros direitos. Desde logo, o direito de ir visitar a família ou de trazer familiares. São essas, no fundo, às vezes contradições que, ainda que a lei proteja, a prática da lei é outra realidade.
Os imigrantes seguem sendo fundamentais para a economia do país?
O impacto e a importância da imigração num país especialmente envelhecido, como Portugal, são fundamentais. Além da estrutura demográfica, tem a ver com a própria dinâmica do mercado de trabalho que, em determinados setores econômicos, depende de mão de obra estrangeira.
São os tais trabalhos mais exigentes, mais sujos, mais mal pagos, mais precários, que de uma maneira geral, não é específico de Portugal, os países de destino, normalmente, os nacionais não querem desempenhar essas funções. Se calhar os portugueses que emigram desempenham essas funções noutros países, mas não desempenham em Portugal.
É falsa, então, a hipótese de que os imigrantes estão a roubar emprego?
Completamente. Claramente. Os portugueses e os estrangeiros não estão nas mesmas atividades econômicas. Portanto, quando nós lemos “ah, estão a roubar um emprego”, estariam [se estivessem] na mesma representatividade, nas mesmas atividades. O que existe é complementariedade.
Se nós temos uma imigração, essencialmente, de motivação econômica, naturalmente, e isso viu-se, por exemplo, na crise econômica e financeira que se teve entre 2008 e 2015, o que acabou por acontecer foi que nós tivemos uma imigração que recuou, diminuiu. Na realidade, tivemos um aumento das saídas em contraponto às entradas. Por quê? Porque, de fato, [a imigração] vem numa lógica de absorver o mercado de trabalho.
[Se] Não há emprego, mudo o destino. E este aumento da imigração mais recente também tem a ver com isso. Tem a ver com, no fundo, necessidades do mercado de trabalho que, rapidamente, encontraram forma de sustentar-se.
Daí, de ser completamente falsa a ideia de que [os imigrantes] vêm roubar emprego. Não vêm roubar emprego. Vêm dar resposta ao emprego que fica, muitas vezes, deserto se eles não vierem.
Depois que a Aima absorveu o Alto Comissariado para as Migrações, o que é que mudou na prática para o Observatório das Migrações?
Desde logo, desapareceu o acesso a um orçamento. Desde janeiro que o observatório está sem orçamento para funcionar. Outra grande consequência que foi visível: o site foi tirado do ar. Quer dizer, em bom rigor, há alguns boicotes. Nós sentimos que o observatório tinha bastante independência, tinha uma dinâmica muito própria, mas que dependia muito deste financiamento que recebia.
Portanto, o observatório funcionou até o final de 2023 com esse orçamento aprovado no quadro do Alto Comissariado para as Migrações para as suas publicações, gestão de conteúdos no site, eventos de disseminação de conhecimento e de debate.
A partir de janeiro 2024, fomos um bocadinho funcionando por amor à camisola.
A senhora era a diretora científica do Observatório das Migrações e, em julho, o governo anunciou a alteração. Como tem sido essa transição?
Eu soube pelas notícias. Ao fim de 22 anos no observatório, não percebi ainda se querem continuar comigo ou não. Estou um bocadinho a tentar perceber qual é a ideia que têm.
Você não tomou conhecimento dessas mudanças em que momento?
Eu fiquei a saber pelas notícias. Eu fiquei um bocado perdida. Eu já estava lá há oito anos na Direção Científica. Quer dizer, para além da Direção Científica, eu estava com a coordenação-executiva deste observatório há dezenove anos. E, portanto, é um bocadinho estranho este desfecho.
Comecei como pesquisadora do observatório logo no início, em 2002. E, a partir de 2005, desafiaram-me a ficar com a coordenação-executiva. Me sinto de consciência tranquila pelo trabalho que fomos construindo. Eu acho sempre que é importante haver este refresh nas áreas científicas, de experiências acadêmicas. Agora, o timing foi estranho. E a forma como foi tudo gerido foi um bocadinho estranho. Porque foi retirar-me da minha casa.
Eu sou muito amiga do professor Pedro Góes [pesquisador da Universidade de Coimbra e nomeado para direção científica do Observatório das Migrações]. Nós nos conhecemos da academia, temos respeito intelectual um pelo outro. E, portanto, claramente, nem que seja por isso, vamos continuar a colaborar. E eu também cá estarei para o apoiar. A manter este observatório. Espero que não haja um deitar fora do que foi o trabalho destes últimos vinte anos.
A intenção de fazer esta mudança foi do governo?
Foi do governo. Claramente.
A equipe do observatório tinha quantas pessoas?
Nos momentos bons, contávamos com seis pessoas. É importante perceber que desde 2020 nós temos tido algum desinvestimento nesta área de investigação [pesquisa]. E houve ali uma altura que fiquei sozinha no primeiro semestre de 2020 e depois gradualmente fomos reforçando, com mais três pessoas.
Agora, este ano, ficou sem ninguém. E, portanto, é um bocadinho este desfecho urgente que é preciso ressuscitar: é ativar ou dar orientação do que se pretende. O observatório, para funcionar de fato, precisa de recursos. E desde 2020 o grande desafio tem sido esse.
Haverá este ano o relatório anual publicado pelo observatório, que é fundamental?
Eu estava a fazê-lo, mas, a partir do anúncio de julho, estou um bocadinho a aguardar que me digam se é para continuar a fazê-lo ou não. Em termos intelectuais, como acadêmica, eu farei porque é algo que me interessa sempre. Eu posso produzi-los para aquilo que é a análise da informação e dos dados, até por interesse intelectual, mas não vou poder manter a publicação, porque teria de pagá-la do meu bolso, e aí está fora de questão.
Que impacto essa pausa grande no observatório e a possível não publicação do relatório podem ter na elaboração das políticas públicas?
Uma das consequências agora, neste primeiro semestre, foi sobre o novo relatório estatístico do asilo, que estava anual e ia avançar para o quarto volume agora em junho passado. Era tradicionalmente lançado no Dia Mundial do Refugiado, em 20 de junho, e já não existiu porque não houve, no fundo, informação disponibilizada para redigi-lo. Deu um bocadinho aquela coisa da omelete sem ovos.
Deixamos de perceber quantos são, quais são as características, quais são os perfis, o que está a ser feito nos seus percursos de acolhimento. É toda uma caracterização que, desde logo ao nível da proteção internacional, deixamos de ter.
Acredita que haja falta de vontade política do atual governo para que dados importantes das migrações sejam bem divulgados e analisados?
Eu não quero acreditar que há essa intenção. Se assim fosse, seria quase imprudente dizer que querem restituir o observatório ou que querem continuar a investir neste observatório. Eu acho que não é essa a intenção. Agora, preocupam-me às vezes estes vazios de informação e a coincidência das situações.
Concorda que o avanço da extrema direita impulsiona, ainda mais, ataques xenofóbicos aos imigrantes?
Sem dúvida. Aí não tenho dúvidas. Não é uma conspiração, é um fato. E tem a ver, também, com as formas enviesadas com que manipulam a informação. E daí eu achar importante, seja o Observatório das Migrações, seja, no fundo, o INE, ter este papel importante de continuar a disseminar a informação que permita criar contradiscursos.
Quais você acredita serem estratégias eficazes para a integração de imigrantes em Portugal? O que tem sido feito e o que ainda falta fazer?
Como acadêmica, acho sempre que é importante fazer diagnósticos. Por exemplo, o relatório dos indicadores de integração dá alertas importantes, desde logo, ao nível da participação política. Eu acho que é das áreas que continua Portugal a precisar claramente de aprofundamento. Continuamos a ter um recenseamento eleitoral dos estrangeiros muito baixo. Mesmo muito baixo. Apenas 8% dos que têm direitos políticos o fazem.
E, portanto, acaba por ser uma prevalência mesmo muito reduzida. E é um direito que muitos dos imigrantes desconhecem que têm.
Por que não sabem?
Muitos desconhecem, outros sentem que não têm consequências, não têm efeito. Outros, face à experiência que têm nos seus países de origem, não têm essa rotina, essa prática. Mas eu acho que é uma das áreas de integração, de mobilização da participação política, da voz. E isto eu acho que acaba por gerar consequências também ao nível do comportamento de alguns partidos políticos.
Porque eu acho que, quando os imigrantes puderem efetivamente mostrar a sua vontade num boletim de voto, alguns políticos mudam algumas posturas. Portugal precisa rever e repensar um bocadinho a forma como concede direitos políticos e como incentiva a efetiva utilização desse direito político.
Qual é a melhor forma de combater a desinformação e os estereótipos sobre imigrantes?
Isso foi uma preocupação nos últimos dez anos no observatório. Porque havia muito esta consciência de que nós, muitas vezes, estávamos a trabalhar com os convertidos. Ou seja, nós dávamos informação a quem já estava sensível a que há muitas falsas ideias sobre a imigração. E, ao longo destes anos, fomos aprendendo as estratégias fora da caixa.
Então, fizemos várias atividades que, no fundo, era numa lógica de transferir conhecimento, tendo consciência de que muitas pessoas não conseguem ler quatrocentas páginas de um relatório. Lançamos várias infografias, passamos a publicar estatísticas de bolso da imigração com ampla divulgação, nomeadamente para a Assembleia da República, para as escolas, para as câmaras, para os jornalistas. Portanto, no fundo, é esta ampla divulgação.
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