A jornalista Marise da Silva é brasileira, tem autorização de residência portuguesa e faz várias viagens ao longo do ano, por motivos profissionais ou por lazer. Em dezembro de 2024, ela pediu a renovação do visto para os Estados Unidos, necessário para que ela participasse de reuniões no país.
Durante entrevista na representação diplomática, Marise foi pega de surpresa ao ouvir do funcionário do consulado no Rio de Janeiro que, sem desviar os olhos da tela do computador, perguntou a ela: “A senhora viaja muito?”.
A informação das viagens de Marise não constava no passaporte da jornalista, mas sim do sistema de dados do governo norte-americano.
“Vejo aqui que, nos últimos meses, a senhora esteve em Dubai, Azerbaijão e Egito. Qual foi o motivo da visita ao Azerbaijão?”. Assustada, Marise respondeu que participara da Conferência do Clima naquele país.
REPORTAGEM: O fim da privacidade
Apesar de existirem relações diplomáticas entre os Estados Unidos e o Azerbaijão, o site do Departamento de Estado norte-americano mantém um alerta por viagens ao país.
As autoridades norte-americanas consideram que no território há atividades terroristas e que o país é uma área de conflito armado. “Grupos terroristas continuam a planejar ataques e representam um risco”, informa a página do governo estadunidense.
Mas para além das convicções norte-americanas sobre Azerbaijão, de algum modo a ida de Marise ao país foi parar na tela do computador do funcionário do consulado dos Estados Unidos.
O caso da jornalista é um exemplo de como os Estados Unidos intensificaram a vigilância sobre aqueles que precisam ou querem visitar o país.
O mesmo ocorre com cidadãos portugueses (europeus, em geral) que, embora isentos de entrevistas presenciais para obter a autorização de viagem, passaram a ser obrigados a justificar pessoalmente o motivo de visitas a determinados países, incluindo o Azerbaijão.
Acordo sobre dados entre EUA e União Europeia
No contexto de maior vigilância, em novembro de 2024 o Comitê Europeu para a Proteção de Dados divulgou um relatório sobre a primeira avaliação do Data Privacy Framework, um acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos para regular a transferência de dados pessoais.
O acordo, detalhou o advogado Fábio Pimentel, sócio do escritório CPPB Law, substitui os antigos Privacy Shield e Safe Harbor, invalidados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia devido a preocupações com a segurança e a privacidade das informações dos cidadãos europeus.
SAIBA MAIS: O fim da privacidade
Pimentel disse que o Data Privacy Framework representa uma tentativa mais abrangente de sanar as preocupações levantadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
O acordo se baseia numa ordem executiva assinada pelo ex-presidente Joe Biden que impõe regras para a coleta de dados de inteligência e estabelece um mecanismo de revisão independente para violações.
Para a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “o novo quadro de privacidade de dados com os Estados Unidos garantirá fluxos seguros de informações para os europeus e trará segurança jurídica para empresas de ambos os lados do Atlântico”.
O texto do acordo prevê salvaguardas que limitam o acesso aos dados pelas autoridades de inteligência dos Estados Unidos para proteger a segurança nacional.
Também está previsto o aumento da supervisão das atividades dos serviços de inteligência norte-americanos e da criação de um Tribunal de Revisão de Proteção de Dados para investigar queixas.
O problema é que o pacto foi assinado por Biden, derrotado por Donald Trump nas eleições presidenciais. E o novo presidente, por outro lado, tem uma visão particular sobre segurança nacional e imigração — fatores fundamentais para o uso de dados pessoais, dizem especialistas da área.
Apesar dos avanços, persistem preocupações sobre o novo acordo, especialmente no que se refere à ampliação da vigilância governamental. As agências de inteligência americanas mantêm amplos poderes para coleta de dados sob justificativa de segurança nacional, mas a definição do que constitui uma necessidade legítima de vigilância permanece vaga, afirmou Pimentel.
A perseguição generalizada a estrangeiros sob a administração de Trump alimenta desconfianças a respeito do tratamento de dados sensíveis —que estão incluídos no acordo.
O temor de especialistas é que informações como orientação sexual, filiação sindical e afinidades políticas estejam sendo usadas pelo governo Trump para monitorar, barrar e até expulsar estrangeiros em solo norte-americano.
Procurada pela BRASIL JÁ para tratar do tema, a embaixada dos Estados Unidos em Portugal não respondeu às perguntas da reportagem.
Fluxo de dados na União Europeia
A União Europeia determinou que todos os países-membros implementem sistemas de coleta de dados biométricos em aeroportos e portos até o final de 2025.
Em Portugal, essa implementação começou em 2024 nos aeroportos de Lisboa e Porto e deve se expandir ao longo do ano. Ainda não está claro qual órgão será responsável pelo controle desses dados.
Especialistas alertam que os Estados Unidos podem cruzar informações biométricas recebidas da União Europeia com bancos de dados internos para negar entrada a imigrantes que tenham solicitado asilo, ultrapassado prazos de permanência ou sejam considerados “riscos potenciais”. O caso de Marise da Silva reforça esse temor.
O medo dos analistas tem fundamento. No começo deste ano, vários estados norte-americanos entraram na Justiça para barrar a tentativa do Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos, liderado pelo bilionário Elon Musk, de acessar dados financeiros e fiscais de milhões de cidadãos, protegidos por sigilo.
“Como homem mais rico do mundo, Elon Musk não está habituado a que lhe digam 'não', mas no nosso país ninguém está acima da lei”, afirmaram procuradores-gerais em estados norte-americanos.
Brasil quer esclarecimentos sobre fluxo de dados
No Brasil, o Itamaraty se prepara para pedir esclarecimentos a governos europeus sobre os riscos aos cidadãos brasileiros.
O senador Nelsinho Trad, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, afirmou que o governo acompanha a implementação do sistema de Entrada/Saída da União Europeia e seus impactos.
A CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) enfrenta cortes orçamentários que afetam sua capacidade de fiscalização, o que agrava preocupações sobre vazamentos de dados biométricos.
Substituta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o SEF, a Agência para a Imigração e Mobilidade, a Aima, enfrenta dificuldades técnicas.
No segundo semestre de 2024, a agência registrou uma falha generalizada em seus sistemas, impedindo o processamento de milhares de pedidos de residência e dificultando o acesso de imigrantes a documentos essenciais.
O governo de Portugal afirmou que todas as informações sobre o incidente foram divulgadas, mas recusou-se a prestar mais esclarecimentos.
Especialistas consultados pela reportagem indicam que a segurança cibernética da Aima não é robusta para lidar com a crescente quantidade de dados sensíveis armazenados.
Isso levanta preocupações sobre o risco de vazamento de dados biométricos, que poderiam ser acessados por governos estrangeiros ou criminosos especializados em roubo de identidade.
Em 2023, a SIC fez uma reportagem mostrando falhas nos sistemas do extinto SEF. Os repórteres conseguiram criar uma identidade falsa no sistema, obtendo um número de Manifestação de Interesse válido.
O processo foi cancelado em seguida pelos jornalistas, mas a SIC estimou que cerca de sete mil pessoas conseguiram obter o número de forma irregular. E a Aima herdou esses sistemas antigos.
Em resposta à BRASIL JÁ, a Aima informou que a “segurança da informação e a proteção dos dados pessoais de todos os cidadãos estrangeiros é um dos vetores estratégicos” da agência, estando “empenhada em melhorar continuamente a sua atuação” por meio da “execução do Plano Estratégico de Transformação Digital durante o ano de 2025”.
E completou afirmando que “está a reforçar o seu nível de ciber resiliência nos domínios processuais, tecnológicos e humanos”.
A BRASIL JÁ enviou e-mails à CNPD, à Embaixada dos Estados Unidos e ao governo de Portugal em 20 de fevereiro, mas, até o fechamento desta reportagem, não obteve resposta.
Editor de texto: Nonato Viegas
Editor de página: Déborah Lima
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